sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Cachorro que Ladra

Ouvi, mas perguntei um o quê. O meu amigo, nas margens de um baba de domingo, analisando o santo-conto que eu lhe depositara na palma com a surpresa de primeira viagem, como se eu nem tivesse mostrado nada do projeto pra ele antes de xerocar e fazer o causo, repetiu: "Pensei que você não fosse fazer". Não questionei, sabia o que ele queria traduzir com isso. E um lance semi-gol nos desviou o rumo do diálogo.
Breno Fernandes, que a Espanha o guarde, me dizia que nossa geração é daquela gente que senta no bar, esbraveja, tece mil projetos e no fim nada de cabo nem rabo. Euforia de instante, empolgação sentada em cadeira, que dói que nem gastrite ao ficar em pé. E senti ser não só teoria dele, de tomagem de cerveja na varanda, e sim tese se generalizando, ao ler "Até o Dia em que o Cão Morreu", do Daniel Galera, escritor da novíssima safra nacional. O protagonista acabou de se formar, mora sozinho mesmo que ainda bancado pelos pais, e não sabe qual o próximo passo cometer. Por que é isso: nós todos nascidos em 80 e 90, era de novas transfusões empregatícias, temos um condicionamento de vida fácil de se delinear e obrigatório de se obedecer, escola-colegial-vestibular-faculdade, mas nos perdemos fácil aos vinte e cinco anos, quando a coisa deixa o caráter previsível. As escolhas se multiplicam, quando nem aprendemos a escolher de verdade. E são os sintomas desse piripaque que se dá ao sujeito do livro de Galera. Afirma que vai procurar emprego, que vai pegar o número da menina com quem ele saiu dois dias atrás, que vai dar um nome ao cachorro encontrado na rua, que vai descobrir o motivo de umas dores no abdômen, mas fica o dia inteiro trancado, bebendo cerveja e escutando discos. E o porteiro do prédio comenta com ele: "Esse seu pessoal de hoje anda meio perdido, né?".
A letargia é anterior a esse momento de múltiplas escolhas. Muitas vezes apenas está, apenas acontece, sem distinguir uma exata fase. Não precisa de dúvidas também. Rodeia e nos embala, se não repelirmos, e com força. A culpa talvez seja da televisão, da propaganda subliminar, da desestruturação nacionalista, do excesso de informações tapeando a força do conteúdo, talvez. Sabe-se só que sim, o algo rebelar em nós foi sucateado, propositadamente adoecido. Uma droga do apenas falar fazer.
Não confundir apatia com alienação, não agora, não nessa juventude. Mesmo a consciência não leva o conscientizado à ação de suas vontades. Ele enxerga o que acontece, sabe o que o mina, conhece mais ou menos um caminho de retarguarda ou contra-ataque, mas não consegue praticar, o algo rebelar danificado puxa. Como um tetraplégico, é lúcido, mas sem locomoção. E para se erguer? Comé que faz? Dê-lhe um fio de Ariadne, doutor. Chuto como isso a feitura duma potência interna daquelas de pós-leitura de Sartre. Ou um estímulo direto, alguém que empurra com as próprias mãos, autoritarismos políticos, religiosos, familiares. Ou uma sensação de movimento ao redor, contrariando o marasmo no mundo que seu marasmo induz. Pra essa última, acho que um troço de manifestação pública, intervenção urbana, mesmo que não tenha repercussão quase nenhuma, que seja mais nhémnhémnhém do que se pensa, colabora. É você ver alguém bebendo água e sentindo a saliva em seco, a sede se instalando.

3 comentários:

Unknown disse...

Altas dosagens de "Soma" na comida industrializada.Só pode ser essa a explicação!

Bodo disse...

Caro Saulo, no meio do imenso marasmo que as férias hoje já representam, eu encontrei o seu blog. Juro que fiz esse pseudônimo (na realidade modifiquei uma conta do blogger já existente) para registrar o meu espanto (ou será mera curiosidade?) por ver a relativa pouca quantidade de comentários nos seus textos. Não que um blog seja uma competição de popularidade, mas o fato significa pelo menos duas coisas: Ou as pessoas já não acessam muito ou não tem muito o que falar. E, dada a qualidade da maioria dos seus textos (elogio, mas não exageremos) qualquer uma das duas hipóteses é preocupante. Só isso.

Ps: Você me conhece fora do mundo virtual mas eu estou numa fase de reclusão social, daí esconder a minha pessoa.

Leonardo Pastor disse...

Alto índice de leituras subversivas deixam a pessoa assim, com idéias neo-revolucionárias. Calma, ainda não é preciso pegar em armas.
Mas, entende-se que fugir ao senso comum é muito saudável, e isso você faz muito bem.