quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

#4 . Santo-conto

AEROCLUBE
5 de Janeiro

Eu e Rafael Ribeiro. "Meu Nome Não é Johnny", sessão das 15:35, regada à amendoim comprado de R$1,70 das Lojas Americanas. Selton Mello e seus diálogos geniais, Cléo Pires, uh, aquela passeando na calçada já é intervenção urbana, terrorismo poético. Depois de nosso momento lúdico e pró-cinema nacional, fomos ao estacionamento, lindo de tão repleto. Era dia de feira de não sei o quê logo ali, cheia de barraquinhas que nem São João, vendendo uns artesanatos, e somado com o próprio cinema do Aeroclube - a única coisa que anda funcionando por lá, inclusive -, que anda barato e com cupom de desconto, fechou.
É uma delícia a sensação criminosa que se dá quando você pára com um amigo, cofiando o queixo, e monta uma estratégia de ataque. "Eu por essa fila, você pela outra, sempre nessa ordem". "Massa". Ele posicionou os fones de ouvido - idéia boa essa - e foi, enquanto eu ficava numa cara de olha-eu-sou-invisível. Aliás, tenho notado que sou quase um mudinho assaltando. Se pedem licença, eu faço um gesto com as mãos. Se cumprimentam, eu aceno. A voz vem só quando perguntam "Isso aí é só pra carro, é? Traz cá pro bróder"ou chega o segurança. Chegou o segurança. E já passados uns duzentos carros. Até estranhei.
"Ô, amigo, não é permitido entregar papel aqui não". "Mas não é propaganda". "Qualquer tipo de papel". "Movimento cultural, toma aqui, ó. Vocês não investem na cultura, não trouxeram até uma feirinha pra cá?". "Mas papel não". "Não machuca ninguém". "Vou ter que acionar o resto da segurança e recolher tudo". "Ah, não sabia desse regulamento do shopping" (cínico). E foi aí que eu reparei que se tagarelasse, ganharia tempo pros visitantes saírem com o carro e o santinho no pára-brisa e pra Rafael tomar conta do resto. Ele notou o sinal e pulou duas filas. E o segurança, como todo aquele que é coaptado a falar sobre o regulamento, inflou o peito e "Bom, já trabalhei em vários shoppings, conheço bem, e aqui acontece... blábláblá".
Sete minutos depois. "Mas entenda, amigo, distribuir papel suja o chão. As pessoas pegam, rasgam e jogam a lambança pro pessoal da limpeza. Imagine como isso aqui iria ficar daqui a uma hora". "Bom, meu pressuposto é que as pessoas apanham, lêem, gostam da proposta e levam pra casa". "Rum! Até parece!". "Então o senhor quer que eu desacredite na humanidade?". "É... sabe como é o temperamento dessa gente".
Seis minutos depois. "Onde você distribuiu?". "Por aí. Nem lembro mais". "Como não lembra?". "Tanto carro, sabe como é. Bom, deixa que eu recolho, pra não te dar trabalho". "Não, eu vou com você" Ou não confiava ou pegou amizade. Pela teoria da humanidade que ele me impôs, aponto a primeira opção. "Não precisa. Pode ficar aí no seu posto". "Meu trabalho é fazer ronda, amigo". Derrotado: "Ok, eu fico com a ala norte e você com a sul". "Beleza". "E depois você me devolve o que pegou, certo?". Pelo menos não perderia meu volume.
Fui todo chocho, tirando bem devagar. A primeira fileira me apertou, uma mulher até me olhou com compaixão ou foi impressão minha. Tá, impressão minha. Na segunda, a malícia voltou. Fui tirando uns, deixando outros. Os de pára-brisa menos visíveis, como os que ficam perto de palmeiras, permaneceram lá com o santinho, o olhão do desenho de Jana balançando com o vendaval que faz ali. E uns eu fingia tirar, mas na verdade botava. E nessa procurando sempre Rafael.
Quando achei, ele vinha com a cara lisa e riso: "Acabei todos! Rapaz, fui até aquele último carro ali, olha, bem naquela zona escura. Chega bateu a emoção". "Mas..." Observei as fileiras que faltavam eu visitar. Era "aSSAlto" pra tudo que eu encarava. "Bom, vamos lá resgatar o volume de santinhos que ele recolheu". "Ele mandou recolher, foi? Que viado". "É, mas vou dizer que já recolhi desse lado, pegar o volume e me picar". "Hé! Falou, moleque!" (Rafael é paulista) "Me espera lá na escadinha. Ele não pode saber que o trabalho é em grupo". "Beleza. Tem trocado pra eu comprar uns queimados?"
As feições do segurança se transfiguraram ao cubo. Enfezado como uma mãe depois do copo de cristal quebrado. Ainda catava papel em pára-brisa, auxiliado por um outro, de colete pára-bala e o escambau. "Não sabia que era tanto assim, mermão!", grunhiu ele. "Mal. Da próxima vez nem faço". "Acho bom".
Fim da operação e ele me entrega um bolo de santo-contos. "Valeu", agradeci. "É poesia, é?", abriu a boca pela primeira vez o fardado e vem logo com tom de sacanagem. "Mais ou menos. Prosa". "Ãhn". "Fica aí um pra você...e pra você". O segurança da ronda recebeu a contragosto.
Subi as tais escadas e demorei para encontrar Rafael, perdido na multidãozinha do ponto de ônibus que logo se segue. Queria sair dali logo, a adrenalina ainda vindo.
E o procurado chega, apontando para o estacionamento: "O segurança não tá lendo ali lendo?". Era o fardado. E tava mesmo, tão grande as mãos que o papel sumia, só dava pra ver a expressão intrigada, sobrancelhas de quem tenta ler na penumbra.

5 comentários:

Reny disse...

É bacana o modo como você insere um certo lirismo em contos do seu dia-a-dia.

Sucesso ao aSSAlto!

Reny disse...

Ah, eu publiquei alguma coisa entitulada "Ela" que talvez possa se chamar de conto. Minhas loucuras. Como não é esse o meu objetivo profissional, não tive muita preocupação. Se puder dê uma passada lá! :D

Álvaro Andrade disse...

É isso aí, velho!
Um aSSAalto nunca é em vão.
Pelo menos uns 20% de almas vc salvou ali. Ou pelo menos deixou mais pensativas.

Abraço!

Reny disse...

Uma coisa é certa: ainda preciso aprender muito com você!

Beijo.

Unknown disse...

Foi punk!Outros shoppings que nos aguardem!