domingo, 27 de janeiro de 2008

Quatro Patas

“Se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias” – Hermann Hesse

Lucas Hungria Trindade Santos, mas havia um amor duas casas ao lado para chamá-lo de Luquinhas que eu sei, não me engana. 16 anos, na 6ª série, sim, e daí?, com uma insistência se formaria ainda no girassol das idades. Insistência e permissão. A primeira já é impossível dizer, fica no infinito do se, a segunda dia 11 negaram com três disparos no peito. Ele, ajoelhado, pedindo o que fosse. O PM, pistola apontada, não querendo perder a viagem do braço.
O erro de Lucas foi correr. Quando avistou uma perseguição policial a um sujeito na Ladeira de São Caetano, soltou as pernas. Que é isso, Luquinhas. Nunca ouviu a história da estátua de sal? Você virou sal. Atingido na mão e em seguida cercado.

Djair Santana de Jesus tinha uma arma, daquelas que brilham até sob luz de fósforo, que se guarda para não deixar machucarem nossas mães no futuro, e um pacotinho seguro de drogas, o bom jeito de ver dinheiro ainda adolescente, comprar camiseta do Bahia, tênis, bola, pilha do controle remoto. Tinha, mas nunca soube disso. Engoliu seus dois tiros e ganhou a biografia que não é sua.

Alexandre Macedo Fraga, suposto como aquele que iria assaltar um caixa de banco, treinava para ser motoboy. Se dessem mais uns dois anos, ok, uns três anos, ele já estaria pronto para acelerar 120, 140, 200km e fugir daquele projétil. Projétil, projeto, projétil, projeto. Essas palavras são próximas demais. Maldade.

"Ricardo Matos dos Santos", gritou ele mesmo, depois do primeiro sulco de sangue no corpo e antes de outros sete. Era acrobata. Por que futebol naquela hora então? Era forte candidato ao Cirque du Soleil. Por que futebol naquela hora então? Infidelidade. Um circense deve estar sempre no circo, protegido pelas lonas. Reconheço, Ricardo, que você pode argumentar que um policial também deve estar sempre com a farda, que deve ter sempre língua para ao menos indagar. Mas ele pode, faz o que alveja. Ele tem o fogo, e você, só a chama, que se foi.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

#6 . Santo-conto

Primeira remessa completa, cumpades, nos carros dos seguintes cantos:

Lucaia - Interligar o Rio Vermelho com um quase-Iguatemi é mais útil que luz de lâmpada. Eita atalho. Merece sim seu ataque concentrado.
Morro do Gato - um bairrito engana-trouxa. Pensa que é só uma ladeira subindo e uma ladeira descendo, não tem movimento, não tem carro, nem teto, nem parede, só um poema de Vinicius. Não, atravessá-lo de nabo a lábio exige um bom bolo de papéis.
Brotas - Lá pela Cruz da Redenção, na companhia do grande Pedro Pina, aquele que embalou e queixou Mariana Ximenez. "Não, nada de compromisso, tô de férias", disse ela, graciosa.
Estacionamento da Speed Lanches (Ondina) - Chamo que chamo Alexandre, o número de carros transcende. Alternativa para escapar do momento de pagar a conta.
Calabar/Centenário/Graça/Corredor da Vitória - Certamente a maior peregrinação do movimento até agora. Sol de duas da tarde, horário marcado pra chegar no Museu e caminhada, caminhada. Mas na prosa com o repeteco Alexandre Senna, foi vupt. Saravá, rapaz.
Rio Vermelho - Noite. Arredores da Dinha. Todas as ruelas levaram a um bom lugar.
Stiep - Clarice quem cuidou de tudo. E confio. Quem não receberia com agrado até diagnóstico de câncer dessas lindas mãozinhas?
Itapuã - Davi, você fez, Davi? Davi, Davi.
Sabino Silva - Um ponte sem fundo. Passe às 18:30 e veja. Precisei de duas viagens, uma noite, outra também, para completar todos os espaços de carros.
Chame-Chame - Nada demais. Só para avolumar a lista.
Campo Grande/Canela/Garcia - Show de Lenine, lado de fora. Disputa com vários outros entregadores de papéis, que tiveram a mesma originalíssima idéia.
E o grand finale na reunião dos participantes do aSSAlto, decidindo diretrizes confidenciais (uh) para nossas idas de vidas, lá pela Dinha. Deixei o meu último bolo em cima da mesa. Alguém viu algo peculiar em várias coroas brindarem ao lado com xícaras de porcelana e disse: "Vou entregar pra elas". "Te acompanho", garantiu outro. "Ei", sugeriu um terceiro, "se é pras elas, que seja pra todo mundo". E nessa noite vi até aviãozinho de papel feito com o santo-conto. Bom criar uma literatura assim para voar.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Cachorro que Ladra

Ouvi, mas perguntei um o quê. O meu amigo, nas margens de um baba de domingo, analisando o santo-conto que eu lhe depositara na palma com a surpresa de primeira viagem, como se eu nem tivesse mostrado nada do projeto pra ele antes de xerocar e fazer o causo, repetiu: "Pensei que você não fosse fazer". Não questionei, sabia o que ele queria traduzir com isso. E um lance semi-gol nos desviou o rumo do diálogo.
Breno Fernandes, que a Espanha o guarde, me dizia que nossa geração é daquela gente que senta no bar, esbraveja, tece mil projetos e no fim nada de cabo nem rabo. Euforia de instante, empolgação sentada em cadeira, que dói que nem gastrite ao ficar em pé. E senti ser não só teoria dele, de tomagem de cerveja na varanda, e sim tese se generalizando, ao ler "Até o Dia em que o Cão Morreu", do Daniel Galera, escritor da novíssima safra nacional. O protagonista acabou de se formar, mora sozinho mesmo que ainda bancado pelos pais, e não sabe qual o próximo passo cometer. Por que é isso: nós todos nascidos em 80 e 90, era de novas transfusões empregatícias, temos um condicionamento de vida fácil de se delinear e obrigatório de se obedecer, escola-colegial-vestibular-faculdade, mas nos perdemos fácil aos vinte e cinco anos, quando a coisa deixa o caráter previsível. As escolhas se multiplicam, quando nem aprendemos a escolher de verdade. E são os sintomas desse piripaque que se dá ao sujeito do livro de Galera. Afirma que vai procurar emprego, que vai pegar o número da menina com quem ele saiu dois dias atrás, que vai dar um nome ao cachorro encontrado na rua, que vai descobrir o motivo de umas dores no abdômen, mas fica o dia inteiro trancado, bebendo cerveja e escutando discos. E o porteiro do prédio comenta com ele: "Esse seu pessoal de hoje anda meio perdido, né?".
A letargia é anterior a esse momento de múltiplas escolhas. Muitas vezes apenas está, apenas acontece, sem distinguir uma exata fase. Não precisa de dúvidas também. Rodeia e nos embala, se não repelirmos, e com força. A culpa talvez seja da televisão, da propaganda subliminar, da desestruturação nacionalista, do excesso de informações tapeando a força do conteúdo, talvez. Sabe-se só que sim, o algo rebelar em nós foi sucateado, propositadamente adoecido. Uma droga do apenas falar fazer.
Não confundir apatia com alienação, não agora, não nessa juventude. Mesmo a consciência não leva o conscientizado à ação de suas vontades. Ele enxerga o que acontece, sabe o que o mina, conhece mais ou menos um caminho de retarguarda ou contra-ataque, mas não consegue praticar, o algo rebelar danificado puxa. Como um tetraplégico, é lúcido, mas sem locomoção. E para se erguer? Comé que faz? Dê-lhe um fio de Ariadne, doutor. Chuto como isso a feitura duma potência interna daquelas de pós-leitura de Sartre. Ou um estímulo direto, alguém que empurra com as próprias mãos, autoritarismos políticos, religiosos, familiares. Ou uma sensação de movimento ao redor, contrariando o marasmo no mundo que seu marasmo induz. Pra essa última, acho que um troço de manifestação pública, intervenção urbana, mesmo que não tenha repercussão quase nenhuma, que seja mais nhémnhémnhém do que se pensa, colabora. É você ver alguém bebendo água e sentindo a saliva em seco, a sede se instalando.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

#5 . Santo-conto

ONDINA

Eu e Álvaro Andrade (http://www.veiculovoador.blogspot.com) pelo campus da UFBA. Ele com um balaio de jornais da FACOM debaixo do braço, quase gritando "Extra! Extra", distribuindo nas mãos de quem fosse. E eu nos pára-brisas de carro, que meu material é escasso para atingir um a um. Penso que em pára-brisa eu apanho uma família já toda, economizo de quatro santinhos, que seria painho, mainha, filho, filha, para um. Fomos, então, lado a lado, gritando causos em cima de capôs, entrecortados só por "bom dia, senhora, jornal da faculdade de jornalismo" ou "porra, por que Uno Fiat só tem um trequinho de pára-brisa?". O instante-chave foi quando cheguei perto de um Gurgell aberto, só com um pastor alemão no banco de motorista. Chamei Álvaro, que conversava sobre o futuro da humanidade ou sobre as condições do Bahia no campeonato estadual com uma moça. "Tem coragem de botar papel aí dentro?", perguntou ele. "Bora. Vamos virar mártires". "É, depois a gente diz que levamos até mordida pela movimentação cultural". "Aê" E coloquei o santo-conto no painel. Álvaro o jornal. O pastor alemão de língua pra fora, observando os gestos com paciência. Depois nos encarou como quem dizia: "OK, vocês não teriam também um potinho d'água, não?".

JAGUARIBE/FEIRA HYPE

Rente à calçada da orla, a maior seqüência de carros em linha reta que eu já vi. Era pra além do horizonte. Tive que apalpar várias vezes o bolso com o bolo de santo-contos perguntando "será que você agüenta? será?". E não agüentou mal a metade. Sábado matutino de praia exorbita qualquer expectativa numeral. Bom, pelo menos eu tinha dois reais para um copaço de caldo de cana, pingado em umbu e limão, genialíssimo, pena que essas histórias de barbeiro afastaram o velho público, e um povo esperando lá na areia, prontos pra me arrastarem ao mar. A maré estava baixa. Ufa.
À noite, vendo um showzito de rock cover na Feira Hype e conversando com umas gentes (abraço pra Luisão Pereira, autor dessa preciosidade cá http://www.myspace.com/doisemum e outro pra Clarice Bueno, a menina dos dedos táteis em www.degrandesalturas.blogspot.com, pra Renata Alves de www.outravitrine.blogspot.com e tantos tantos), avistei o mini-estacionamento virado para a Av.Contorno. Fui, sob companhia do primo de piloto Alexandre Senna, que tomaria gosto e me acompanharia na grande jornada Calabar-Corredor da Vitória dias depois.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Cuidado - assalto a três metros


por Iuri Reis, graffiteiro com porte, que vem vendo o movimento com olhos de comer.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

#4 . Santo-conto

AEROCLUBE
5 de Janeiro

Eu e Rafael Ribeiro. "Meu Nome Não é Johnny", sessão das 15:35, regada à amendoim comprado de R$1,70 das Lojas Americanas. Selton Mello e seus diálogos geniais, Cléo Pires, uh, aquela passeando na calçada já é intervenção urbana, terrorismo poético. Depois de nosso momento lúdico e pró-cinema nacional, fomos ao estacionamento, lindo de tão repleto. Era dia de feira de não sei o quê logo ali, cheia de barraquinhas que nem São João, vendendo uns artesanatos, e somado com o próprio cinema do Aeroclube - a única coisa que anda funcionando por lá, inclusive -, que anda barato e com cupom de desconto, fechou.
É uma delícia a sensação criminosa que se dá quando você pára com um amigo, cofiando o queixo, e monta uma estratégia de ataque. "Eu por essa fila, você pela outra, sempre nessa ordem". "Massa". Ele posicionou os fones de ouvido - idéia boa essa - e foi, enquanto eu ficava numa cara de olha-eu-sou-invisível. Aliás, tenho notado que sou quase um mudinho assaltando. Se pedem licença, eu faço um gesto com as mãos. Se cumprimentam, eu aceno. A voz vem só quando perguntam "Isso aí é só pra carro, é? Traz cá pro bróder"ou chega o segurança. Chegou o segurança. E já passados uns duzentos carros. Até estranhei.
"Ô, amigo, não é permitido entregar papel aqui não". "Mas não é propaganda". "Qualquer tipo de papel". "Movimento cultural, toma aqui, ó. Vocês não investem na cultura, não trouxeram até uma feirinha pra cá?". "Mas papel não". "Não machuca ninguém". "Vou ter que acionar o resto da segurança e recolher tudo". "Ah, não sabia desse regulamento do shopping" (cínico). E foi aí que eu reparei que se tagarelasse, ganharia tempo pros visitantes saírem com o carro e o santinho no pára-brisa e pra Rafael tomar conta do resto. Ele notou o sinal e pulou duas filas. E o segurança, como todo aquele que é coaptado a falar sobre o regulamento, inflou o peito e "Bom, já trabalhei em vários shoppings, conheço bem, e aqui acontece... blábláblá".
Sete minutos depois. "Mas entenda, amigo, distribuir papel suja o chão. As pessoas pegam, rasgam e jogam a lambança pro pessoal da limpeza. Imagine como isso aqui iria ficar daqui a uma hora". "Bom, meu pressuposto é que as pessoas apanham, lêem, gostam da proposta e levam pra casa". "Rum! Até parece!". "Então o senhor quer que eu desacredite na humanidade?". "É... sabe como é o temperamento dessa gente".
Seis minutos depois. "Onde você distribuiu?". "Por aí. Nem lembro mais". "Como não lembra?". "Tanto carro, sabe como é. Bom, deixa que eu recolho, pra não te dar trabalho". "Não, eu vou com você" Ou não confiava ou pegou amizade. Pela teoria da humanidade que ele me impôs, aponto a primeira opção. "Não precisa. Pode ficar aí no seu posto". "Meu trabalho é fazer ronda, amigo". Derrotado: "Ok, eu fico com a ala norte e você com a sul". "Beleza". "E depois você me devolve o que pegou, certo?". Pelo menos não perderia meu volume.
Fui todo chocho, tirando bem devagar. A primeira fileira me apertou, uma mulher até me olhou com compaixão ou foi impressão minha. Tá, impressão minha. Na segunda, a malícia voltou. Fui tirando uns, deixando outros. Os de pára-brisa menos visíveis, como os que ficam perto de palmeiras, permaneceram lá com o santinho, o olhão do desenho de Jana balançando com o vendaval que faz ali. E uns eu fingia tirar, mas na verdade botava. E nessa procurando sempre Rafael.
Quando achei, ele vinha com a cara lisa e riso: "Acabei todos! Rapaz, fui até aquele último carro ali, olha, bem naquela zona escura. Chega bateu a emoção". "Mas..." Observei as fileiras que faltavam eu visitar. Era "aSSAlto" pra tudo que eu encarava. "Bom, vamos lá resgatar o volume de santinhos que ele recolheu". "Ele mandou recolher, foi? Que viado". "É, mas vou dizer que já recolhi desse lado, pegar o volume e me picar". "Hé! Falou, moleque!" (Rafael é paulista) "Me espera lá na escadinha. Ele não pode saber que o trabalho é em grupo". "Beleza. Tem trocado pra eu comprar uns queimados?"
As feições do segurança se transfiguraram ao cubo. Enfezado como uma mãe depois do copo de cristal quebrado. Ainda catava papel em pára-brisa, auxiliado por um outro, de colete pára-bala e o escambau. "Não sabia que era tanto assim, mermão!", grunhiu ele. "Mal. Da próxima vez nem faço". "Acho bom".
Fim da operação e ele me entrega um bolo de santo-contos. "Valeu", agradeci. "É poesia, é?", abriu a boca pela primeira vez o fardado e vem logo com tom de sacanagem. "Mais ou menos. Prosa". "Ãhn". "Fica aí um pra você...e pra você". O segurança da ronda recebeu a contragosto.
Subi as tais escadas e demorei para encontrar Rafael, perdido na multidãozinha do ponto de ônibus que logo se segue. Queria sair dali logo, a adrenalina ainda vindo.
E o procurado chega, apontando para o estacionamento: "O segurança não tá lendo ali lendo?". Era o fardado. E tava mesmo, tão grande as mãos que o papel sumia, só dava pra ver a expressão intrigada, sobrancelhas de quem tenta ler na penumbra.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

#3 . Santo-conto



AV.SETE
4 de Janeiro


"O artista mineiro radicado em São Paulo, Dácio Bicudo, ultrapassou os limites do Museu de Arte da Bahia (MAM) para levar uma linha vermelha com 10 cms de largura por 3 kms de asfalto, na qual escreveu o nome de mais de 100 artistas plásticos. Nada a ver com o Rio de Janeiro - é como uma fita do Senhor do Bonfim gigante. Ao perceber a intervenção artística no Centro da idade, a Superintendência de Engenharia de Tráfego mandou remover.

A linha pintada no chão sai do andar térreo do Solar do Unhão, pula o muro do prédio do século XVII que pertenceu ao ex-provedor da província Gabriel Soares, atravessa a Avenida Contorno do arquiteto Diógenes Rebouças (o mesmo da Fonte Nova), sobe a Ladeira dos Aflitos, passa em frente ao Quartel, vira à esquerda na Avenida Sete, morre em frente ao Elevador Lacerda e ressuscita na Praça Cayru, na Cidade Baixa, onde será construído o Hilton Hotel.

O trabalho, que não é um dos premiados do 14º Salão da Bahia aberto até fevereiro no MAM é o que mais propicia uma interação com a sociedade, como pretendia o autor. Especialmente com a Superintendência de Engenharia de Tráfego (Set), que ordenou a sua retirada das ruas da cidade. Um dos seus agentes alegou que a intervenção confunde os motoristas, já que linha vermelha é geralmente utilizada como sinalização de ciclovias, conforme contou a assessoria do Museu que recebeu a notificação. A restrição foi formalizada pelo ofício 1126/2007 repassado ao artista.

Dácio Bicudo não gostaria de ter que apagar o próprio trabalho que lhe custou “noites e noites" para ser executado. Disse que foi “terrível”, aplicar o nome de mais de 100 artistas no asfalto entre espaços de 30 cms, dentre eles Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Emanoel Araújo, Ferreira Gullar, Brennand, Lígia Clark, Cícero Dias etc. A maioria, ninguém na Avenida Sete, sabe quem é. Não sabe sequer que o 14º Salão está no MAM e pode ser visitado.

Alba Cristiane Costa, 30 anos, assistente social, cheia de compras na mão, nas Mercês, declarou que não conhece nenhum dos nomes que leu sobre o asfalto. E garantiu que se tivesse tempo seguiria para ver onde iria dar a linha vermelha.
Foi o que o agente da SET fez quando viu a pintura com aqueles nomes todos. E assim chegou ao Museu. Foi quando informou ao assessor Daniel Rangel, que a intervenção não poderia permanecer porque atrapalharia o trânsito. "

fonte A Tarde

Minha mãe me acordou. "A Av.Sete tá interditada, não passa carro nenhum por lá, tudo porque um artista plástico pintou uma linha vermelha no asfalto". "Hum". "A SET quer que a prefeitura pinte por cima". "Hum". "Você vai se lembrar disso quando estiver realmente acordado?". "Hum rum". Uma hora depois. Telefone de novo. "Você ainda não foi?". "Onde?". "Av.Sete! Vai lá dá um apoio ao artista plástico". "Ah, ele já deve ter a mulher dele...". "Vai aSSAltar, aproveita". "Poxa, é verdade. Por que você não foi direta assim antes?"
O fuzuê já havia terminado, se é que o fuzuê em algum momento termina na Av.Sete, mas uma fila saborosa de carros estacionados permanecia, como sempre deve permanecer. E fui de sorriso solto. Dois terrorismos no mesmo dia que é pra deixar de ser besta. Axé, Dácio Bicudo!

sábado, 5 de janeiro de 2008

#2 . Santo-conto

CABULA
3 de Janeiro

"Tava um calor danado por essas bandas,precisava me mexer pra refrescar um pouco.
Havia um certo resquício de ressaca de reveillón na rua,mas a mesma estava cheia,de carros,transeuntes,cachorros e pombos. Cocô de pombo também.
Logo no início comecei pelas casas,caixas de correio,grades de portão.Uma senhora ficou me olhando,imaginando na certa que o intuito desse assalto era outro.Mas não esse.Esse aSSAlto é pela literatura,para pôr fim à mediocridade cultural.
Parti pros carros.Parecia uma Maria Gasolina,era só ver um automóvel dando sopa e eu paf!Santinho no pára-brisa.Não tinha distinção,não,tanto fazia o novo Fox como o bom e velho Gol quadrado.Daí me espalhei,simpatizava com a cara de fulano e falava:"Já conhece o movimento aSSAlto?" - depois entregava o santinho.
Pontos estratégicos como gancho de telefone público,bolsas entreabertas,não passaram despercebidos.
Até na hora de locar "Saneamento Básico" rolou intervenção - pretexto perfeito pra xavecar a balconista da locadora.
E assim findou-se o primeiro dia de intervenção urbana em prol da literatura informal.A garota do vídeo não pode sair mais tarde pra tomar um sorvete,mas foi válido pra dar uma ajuda pros parceiros."

Rafael Ribeiro, grande hombre, amante das causas perdidas (ele tem um mapa) e contribuinte

3 de Janeiro também:
OUTRAS SECRETARIAS DO CAB

Minha mãe precisou voltar na Secretaria de Educação. Lá: "Bom, temos uma vaga para bibliotecária na escola Wil...". "Não sou bibliotecária". "Mas a senhora tem que entender que nosso processo está difícil". "Sou professora". "OK, acho que temos uma vaga aqui pra professora de Filosofia". "Filosofia? Mas minha especialização é educação infantil. Trabalhei com primário a vida toda". "Não tem como você aprender até Março?". "...". Enquanto isso, assaltei pela Secretaria da Agricultura, de Indústria e Minério (e que estacionamentozinhos bons pra pôr papel discreto. Nenhum segurança ao redor), Embasa, Agerba (e aí eu precisei disfarçar, senti que era suspeita minha presença naqueles buracos, ainda com uma mochila lateral, camisa riscada. Disse que procurava a Secretaria de Cultura, mesmo sabendo que por ali não existia) e umas garagens externas de prédios que nem decorei o nome, só sei que tinha slogan federal. Bom, choveu e eu pela primeira vez pensei que isso poderia acontecer no meio de um ataque, molhar a zorra toda, que um acaso climático faria sim sua lambança. Isso não me enfezou mais do que escorregar num morrozinho de grama da Paralela e ralar o dedo, o joelho, quase inutilizar uma face da calça.
"Coordenadora?". "Não quero trocar de função. Gosto do que faço". "E se...". "Professora, meu senhor" Enquanto isso, pus ação de novo na Secretaria de Educação, o guardador de carros já rindo ao me rever. Dei umas voltas, esperei pra cacetes, outras voltas e me contentei em encostar no Gol Vermelho, à espera. Me descontentei, fui pra o meio-fio catar um livro na mochila e me martirizar por não ter nem uma BIC na metade, nada, escritor fajuto, despreparado. Aí que notei entre duas folhas, um exemplar do santo-conto abandonado e úmido. É, alguém pegou no pára-brisa e jogou chão abaixo. Tudo bem, isso eu imaginava em algum momento. Sou melhor pessimista do que metereólogo. Mas o curioso é que estava dobrado e em oito partes, cuidadosamente. Por quê tanto esmero em se livrar de algo?
"Certo, temos uma vaga no Eduardo Novaes"

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

#1 . Santo-Conto

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO
CIDADE BAIXA



1/8 de papel ofício, ilustração na frente, micro-conto no verso. Slogan feito em paint do movimento, anúncio da gráfica apoiadora como lembrança de que o capitalismo mexe mais com quem não tem como se patrocinar, créditos dos rabiscos, todas bem pequenas, espalhados pelos cantos inferiores. Quem desenhou se chama Jana Dourado, uma menina que jogaram aqui em casa e criaram. Pior que ela pensa o mesmo de mim. Mas não acreditem nela, é futura advogada. E quanto à ficção-pílula chamo lá eu, que também sou Dourado, pra confirmar a relação nepótica da geringonça. Santo-conto, oh, yeah, aquilo que se reproduz como coelho. Numa única folha, ou seja, duas xerox, 8 exemplares. Maravilindo.

A intenção permeia a distribuição maciça, claro. Pára-brisa de carro é a menina dos olhos, mas quem tiver com cara de "eu te leria", e aos poucos vou me obrigando ao convencimento de que isso se atribui a qualquer um que cruze pelos flancos (já diria Carlos Casagrande), também leva. Mochila cheia pra todo causo.


Nesse 2 de Janeiro, o plano era Av.Sete, Nazaré, Lapa, onde eu aproveitaria pra abastecer o Salvador Card. Pois é, planejo duas muriçocas num tapa só, rapaz, mais econômico. Mas minha mãe ou mainha ou professorinha Ileuza Matias me desviou na hora do almoço. "Vá comigo na Secretaria de Educação, no CAB. Lá tem um estacionamento enorme". Pensei. "E ainda depois eu vou na Cidade Baixa". Hum. "Lembre-se: aí você não vai precisar gastar nada com ônibus". Boa.

Ela e eu no gol vermelho, botando Arnaldo Antunes, resmungando que João Henrique obrigou a sua agora ex-escola a fechar de tanto desleixo, falta de papel pras provas, merenda, verba, e que ela precisa ver com a Secretaria onde vai trabalhar em 2008 no Estado. Desci no tal e realmente: uma tremenda cara de Estado, o clima modorrento de burocracia, mas um conjunto de carros apetitosos.
“Você vai demorar?”, perguntei, ajeitando a camisa com um nanocanto de Cintia Moscovich e o aSSAlto pintado a caneta de tecido. “Mas você não vai distribuir...?”. “Então. Quero que você demore”.
Por menos condenável que seja colocar um papel do tamanho duma palma de mão num carro, soa constrangedor. Senti a pontada no primeiro limpador que levantei um naco e finquei o santo, todo mundo ali perto, uns pedindo troco aos chegantes, uns vendendo lanche, uns seguranças de camisa amarela. Como se a repreensão pudesse vir e fosse uma repreensão justa. Mas talvez seja só um ranço que todo brasileiro guarda, estender as mãos em qualquer ação fora do comum alarma o interno e pede recuo, um atentado contra a obediência estruturada. Quem desfez esse nosso nervo para a rebeldia eu não acuso. Continuei.
Fui seguindo a fila, sol nos olhos, sem saber que cara fazer. Às vezes sorria sarcástico, às vezes assobiava, olhava para os lados, cumprimentava com a cabeça alguém. E esfreguei mais velocidade na coisa, retirava o santo do bolso como se fosse mágica, girava nos dedos e colocava em seu lugar, esperando quem sabe o carro explodir. E a trilha me conduziu a um estacionamento mais sombreado, com corrente de segregação, carros pomposos, seguranças que não cochilavam.
Depois de uns cinco carros atacados, notei algo em comum entre eles: o adesivo de Secretaria de Educação no vidro frontal. Fiquei malicioso. Toma aí, politicada descarada, quem é que distribui o santinho agora? E até perdi a noção de cautela, imaginando como eles conseguiam tantos Blazers.
Alguém me chamou. Um parrudo moreno acompanhado de um magrelo branquelo. Ambos seguranças. “Sim?”. “Não pode não”. “Mas não é propaganda, é movimento cultural”. “Ordens superiores”. “Papel é inofensivo”. Calma, eu estava sendo sofista. “Não é a gente que diz, é o povo lá de cima”. “Qual a justificativa?”. O parrudo não responde. Vai o magrelo, esperando só a oportunidade de definir: “Porque sim”. “...”. “Bom, na verdade é o que pessoal se chateia com tanto papel. Mandou proibir.” Porra, são com essas medidas que eles se ocupam. “O que é isso aí?”, apontando pra minha mão o parrudo. Não perdi a carona, expliquei o troço. “Ó paí ó, o sujeito é CDF”. “Me dá um desse”, pediu o magrelo. “Venha com o meu”, exigiu o parrudo. E solidário, soltou: “Nos carros dos clientes pode, você sabe, né? Só daqui que é barril”. “Beleza. Foi mal mesmo. Eu não sabia”.
Dei a volta e ataquei nos carros dos funcionários da outra ponta, que eles não enxergavam.

Cidade Baixa, uma hora mais tarde. Terceiro andar do Instituto do Cacau (?). Minha mãe e eu num balcão, em frente a uma gordinha de óculos, bizarramente vestida de roxo.
“Quero dar uma entrada num cargo”, falou minha mãe entregando o envelope com os documentos conseguidos na Secretaria. A mulher apanhou, tirou o que fosse lá de dentro, olhou, deu um formulário de volta e esperou que a professorinha preenchesse todos os espaços. “Ah, mas você trouxe seu comprovante de graduação? Histórico da antiga escola?”. “Não me disseram nada disso”. “Me desculpe, precisa”. Suspiro. “Volte amanhã”. Outro suspiro, enquanto a gordinha se levantava e saía.
Minha mãe me olhou e “Saulo, assalte essa mulher”. Claro. Peguei um, me inclinei pra dentro do balcão e enfiei entre a papelada.

Rua da Cidade Baixa. Uma fileira gostosíssima de carros. Posso soar fetichista, mas é uma visão que realmente passou a me agradar. Minha mãe esperou dentro do gol vermelho enquanto eu executava a carreirinha, de uma esquina à outra. Muita gente em pontos de ônibus do outro lado, transe no trânsito e isso me doava adrenalina, a sensação brasileira de estar se metendo numa idiotice. E comecei um mantra interno de que precisava calejar, precisava calejar, até um sujeito de terno e gravata aparecer no exato momento de ataque ao seu carro. Pulei, suando frio, me dediquei a outro pára-brisa. Mas por que esse temor? O que racionalmente as pessoas devem ter contra a ação, contra o ir à rua com o fim nela mesma? Sorte que o sujeito ficou enrolando, colocando maleta em porta-malas, mexendo nos óculos, sei não, pra eu ter tempo de me refazer. Reaproximei e “Toma. Já ia pôr no seu carro. É literatura”. Ele respondeu um “obrigado” tão sério que relaxei.
Voltei pro gol. Mal sentando, minha mãe veio: “Ah, sim! Pensei que não fosse entregar pro cara de terno!”
E Orquestra Imperial.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

O Miolo Comido Antes

Seguinte: o negoço é rabiscar em papel a literaturice que quiser botar na praça e com a simplicidade arrogante de quem acha que a ficção deve pular por aí, indispensável. Nenhum compromisso social ou político, se não quiser, a arte não precisa militar. O artista que faça o serviço imundo, que seja o pai que amputaria um dedo para ver sua filha estudando no melhor colégio da cidade. Nas mãos, o cartaz, nos pés, o gesto.

O aSSAlto pega a intervenção urbana e chacoalha. Ataques, dos miúdos aos esquizofrênicos, em fases que pretendem se gradativar e sendo, à medida da feitura, divulgados por cá, como num diário de bordo. E toque, toque, dj.

Para alavancar fundilhos em prol do causo, um blog-apêndice estará flutuando na barra lateral, só com sinopses, trechos, fotos de capa e preços de livros à venda. Um sebo rústico, funcionando para as mediações de Salvador ê ô ê ô.

abr-aço

Manifesto

foto Mariele Góes

Há pedaços da rua para os pneus, para o óleo vazando do carro, para o toco de cigarro caído de uma janela. Há pedaços da rua para a sola do tênis coreano, para o bico fino que pode furar o asfalto a qualquer instante, para o pé descalço e rígido que vai e pára, vai e pára, nunca sabe aonde seguir. Há pedaços da rua para a poeira que não é de ninguém e que faz espirrar, para a fumaça tocando no chão e se despedindo em segundos, para o sangue de quem é otimista demais para crer que o sinal está vermelho. E ainda para cadeiras arremessadas, semáforos, cães, embalagens, buracos, vassouras, folhas outonais, bateria de celular roubado. Há pedaços da rua para o que vier, porque ela não se importa, porque ela sabe que não é nada além de uma busca por um fim. A rua é fácil e ninguém deveria querê-la. Mas nós, do movimento aSSAlto , não rejeitamos. Seria hipocrisia desprezar algo que nos é idêntico. Somos tão madalenas quanto a rua. Nossa vontade é estar para quem queira.
E a literatura vai como o pretexto. Pára-brisa, bolsa de gente desprevenida, balcão, consultório odontológico, mão de gringo que veio salvar nossas baianas, dendê saturado, tudo casa para papéis em que rabiscamos. Incômodo, invasão, terrorismo poético. A delícia do absurdo de literaturiar numa capital em que é preciso fugir amanhã.